Cidadã de Segunda Classe — Buchi Emecheta

“tudo começara como um sonho. sabe, aquele tipo de sonho que parece que sai de lugar nenhum, mas que sempre soubemos que existia. dava para senti-lo, ele podia até dirigir nosso atos; primeiro de forma inconsciente, até virar uma realidade, uma Presença.”

o livro é como uma autobiografia ficcional, conta a história de Ada que é tem sua vida muito baseada em como foi a vida da Buchi. ela é nigeriana, igbo, perde seus pais muito jovem e luta durante a infância para conseguir receber o ensino básico. sofre violência de familiares e é utilizada como empregada sem remuneração quando seu pai morre e ela é entregue a família de um tio paterno.

aos 17 mais ou menos decide casar com um rapaz bem bunda mole, sabendo que é mais um contrato social que por amor. é necessário ser uma mulher casada para ir a certos locais, para ter certas coisas. esse rapaz bunda mole nada mais é que um menino muito paparicado pela mãe, com uma família bem razoável na questão de direitos femininos diante do que é comum nas famílias igbos nigerianas. apesar disso ele é um homem violento e abusivo, e preguiçoso.

na infância ela nomeia uma vontade/sonho que toma conta dela como “a Presença”, essa coisa parece ser um sonho de estudar e escrever conforme o livro se desenvolve, foi essa a leitura que fiz. que esse desejo muito primário se transforma e realiza no sonho da escrita, de ter educação, oportunidades, de ser vista e reconhecida por isso.

acompanhamos ela da infância a juventude/vida adulta. dos seus 17 aos 20 e poucos ela tem 5 filhos, apesar de não querer tê-los exatamente.

após se casar ela planeja sua ida para a inglaterra com o marido e o primeiro filho. ela tinha um emprego muito bom na nigéria e sustentava o lar. sustentou o marido por muito tempo. ele foi primeiro e ela deveria ficar sustentando-o da nigéria. porém convenceu a família dele, sim, a deixa-la ir e foi. chegando lá se dá conta que apesar de sua condição financeira na nigéria garantir o conforto de ter empregados domésticos que desempenhavam funções do lar ela não é nada mais que “uma cidadã de segunda classe” assim como todos os negros na inglaterra, independente de quanto ganhem ou tenham.

vive em um cortiço, em um quarto numa casa grande, onde moram outros casais negros. boa parte são iorubas. ela não cita outras nacionalidades além da nigéria. todos são bem contrários a ela por ser a única mulher que recebeu treinamento — educação básica — e assim ter acesso a vagas de emprego razoáveis. ela trabalha por muito tempo em bibliotecas e nesses espaços pode ter ainda mais contato com a leitura.

ao passar dos anos ela segue engravidando dos abusos que seu marido comete contra ela, ele segue sendo sustentado por ela enquanto tenta ser aceito num curso para se tornar advogado — não é — , e impede-a de usar métodos contraceptivos. ele a agride, abusa e manipula. em nenhum momento no livro ela descreve as cenas de abuso e agressão, apesar de comentar sobre as marcas e resultados dessas. acho isso uma das coisas mais legais e interessantes para mim, neste momento tenho buscado me distanciar de livros, hqs, filmes e afins que tornem gráficas e constantes cenas como essas pois tenho entendido que muitas vezes são necessárias pra causar impacto em quem consome, mas se tornam parte de um processo de espetáculo dessas violências, um pornô de sofrimento. e é meio patético que o único recurso para demonstrar episódios violentos e suas consequências seja torna-los visíveis, descritos detalhadamente… acho que é uma saída simples e porca de pessoas brancas para seu desejo, ou fantasia, escondida de ver o que seus antepassados podiam cometer sem serem criminalizados… se bem que ainda cometem.

há um momento que ela confronta uma mulher branca inglesa e esta mente de maneira descarada sobre um fato, Ada diz que naquele momento se dá conta que brancos mentem. fiquei pensando bastante como para nós, hoje, com letramento racial, discussões sobre colonialidade e afins é fácil e as vezes óbvio que o branco só mente, conta pouquíssimas verdades. mas para uma mulher saída da nigéria em 60, um país que teve sua independência em 1960, um guerra civil sangrenta em 67, o quão óbvio é que a narrativa ensinada é mentira? que os brancos roubaram, mataram, abusaram de uma população inteira enquanto salvadores daquele povo? o quão díficil seria entender que um país tão “rico” e bonito era pobre e saqueador de outros? que aqueles que catequizaram um povo, ensinaram que o diabo que instruia suas práticas ancestrais, que doavam algumas coisinhas e faziam suas cotas de caridade eram maus? eu não consigo nem descrever de uma forma sem a leitura que hoje tenho, de que a nossa história, aqui no brasil ou lá na nigéria, é contada da perspectiva de quem mata e rouba e assim eles sempre precisaram se fazer de coitados.

do lado de cá sempre soubemos da nossas contradições. das nuances que a vida possui, de que não há 8 ou 80, dualidade. a lógica bipolar só serve aquele que precisa vilanizar o outro para validar sua existência. culturas que não tem isso não erradas, são pecadoras em assumir a realidade como é, não como um conto de fadas sobre maus e bons, racional e emocional. não há um só ato, uma só escolha que não passe por um conjunto enorme de sentimentos, emoções e questionamentos. desde um café da manhã até a escolha de uma vaga de emprego, nada é racional pura e simplesmente. tudo é processado a partir de um conjunto de experiências individuais e coletivas atravessadas por suas emoções e razões.

ela fala muito pouco no livro sobre debate político de maneira clara sabe, mas sempre há o debate por trás. me parece, e ouvindo outras mulheres leitoras, que nunca há possibilidade de ser uma pessoa marginalizada e escrever sobre estas sem apresentar um plano político/cultural, seja de maneira clara ou não. na entrelinha ou dedicando parágrafos a essas discussões.

enfim, o livro segue a vida dessa mulher, a própria autora, e mostra que ao escrever seu primeiro livro e te-lo queimado pelo então marido ela entende que aquele é o fim. que termina ali a sujeição, a condição maçante que esta. ela diz que ele mata seu filho, o manuscrito é como algo que ela pariu, sua criança acabada de nascer, elogiada por amigos queridos e muito querida por ela. e acaba por ser morta por aquela figura horrenda.

é bonito saber que a buchi apesar de tanto sofrimento até aquele momento se tornou quem a presença a impulsionava a ser. a presença tomou conta. ela estava presente enquanto cidadã naquele lugar, nos seus livros.

texto originalmente publicado em 3 de maio de 2024.

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